6 de fevereiro de 2009

Dispepsia: o remorso de um estômago culpado

Todo médico, seja qual for a área que siga, deveria estar preparado para atender inicialmente um paciente com condições muito prevalentes como gripe, cefaléia, lombalgia, obstipação ou dispepsia.
Os sintomas relacionados ao trato digestivo representam uma das queixas mais comuns na prática clínica diária, e entre eles, a dispepsia é considerada uma condição frequente. Esta queixa é responsável por centenas de milhões de dólares gastos em cada ano com antiácidos e antagonistas H2, e que ocupa o segundo lugar como causa mais frequente de perda de tempo de trabalho, perdendo apenas para a gripe, segundo Donaldson (1987). A prevalência de dispepsia é de 25-40% (OLIVEIRA, 2006).
É uma condição que geralmente denota coisas diferentes para pessoas diferentes, mas, por definição, a queixa de dispepsia deve ostentar uma relação com a ingestão de alimentos ou bebidas.
Dispepsia tem origem no grego dys (prefixo que indica dificuldade) e peptein (digerir).
Um autor referiu-se à dispepsia no Lancet há mais de 100 anos como "o remorso de um estômago culpado". De Quincey escreveu em 1823 que dispepsia "é a ruína da maior parte das coisas: impérios, expedições, e todo o resto." Isso pode ser um exagero. Ainda assim, dispepsia pode certamente ser o prenúncio de doenças sérias.
Tenho um velho artigo escrito sobre dispepsia há 30 anos, por Horrocks e De Dombal, que descreve a apresentação clínica de 360 pacientes que sofriam de "dispepsia" no momento da sua primeira visita a dois hospitais da Inglaterra (Yorkshire). As categorias de doença estudadas foram colecistite, úlcera duodenal, úlcera gástrica, câncer gástrico, e dispepsia funcional, com pelo menos 50 pacientes em cada categoria. Os resultados desta série contrastavam com o descrições dos "livros-texto". Os autores referiam que alguns eram contrastes bastante surpreendentes; por exemplo, a maioria dos 360 pacientes alegou que a sua dor não era agravada pela alimentação. Os autores então, sugeriram, que deveria haver uma razão para os diagnósticos errôneos em relação a esta queixa, e que provavelmente os clínicos não tinham dados suficientes no que dizia respeito à apresentação das várias doenças em causa, quando se tratava de dispepsia.
A definição de dispepsia tem evoluído ao longo do tempo. Atualmente, define-se como dor ou desconforto persistente ou recorrente nos quadrantes superiores do abdome e que podem ou não estar relacionados com as refeições. Na abordagem de um paciente com dispepsia se faz necessário uma anamnese minuciosa, embora algumas vezes de valor limitado na distinção das possíveis causas. Mas é extremamente importante para caracterizar a síndrome dispéptica.
Dispepsia é um sintoma e não uma doença. A síndrome dispéptica pode ser ocasionada por doenças orgânicas em que existe uma alteração estrutural ou orgânica como responsável pelo quadro, ou por doenças funcionais, em que fatores como anormalidades na motilidade gastrointestinal, hipersensibilidade visceral e alterações psicoemocionais estão implicadas etiopatogenicamente. É de suma importância excluir as causas estruturais da síndrome dispéptica antes de rotulá-la de dispepsia funcional, lembrando que neste caso trata-se de uma síndrome heterogênea, de conceito amplo e com um complexo variável de sintomas que se interpõem e mudam de intensidade e freqüência, dependendo de cada paciente.
Repetindo, para enfatizar a importância inconteste da semiologia: A história clínica fornece informações importantes para o diagnóstico e classificação dos distúrbios funcionais gastrointestinais. Quando bem colhida, por si só, revela informações essenciais para o diagnóstico - os achados físicos são normais, como também o são os estudos laboratoriais e de imagem. Assim, o diagnóstico dos distúrbios funcionais depende mais dos dados clínicos (subjetivos) do que de dados laboratoriais (objetivos).
De acordo com Silva et al. (2008). no que se refere ao diagnóstico da dispepsia funcional (DF), a falta de uniformidade em relação à definição motivou a realização de reuniões de especialistas de diferentes países, sendo mais conhecidas as de Chicago, nos EUA, e de Cortina e Roma, na Itália. As conclusões do Consenso de Roma II foram publicadas em livro em 2000 e representam o esforço da comunidade científica para, a partir das investigações realizadas nos últimos anos, sistematizar o conhecimento a respeito dos transtornos gastrointestinais funcionais.
O Consenso de Roma II recomenda que a DF seja diagnosticada quando, em pelo menos 12 semanas consecutivas ou não, nos últimos 12 meses, o paciente apresentar: dor ou desconforto no abdome superior, de caráter persistente ou recurrente, com peso epigástrico pós-prandial e/ou saciedade precoce e/ou náuseas e/ou vômitos e/ou distensão abdominal; ausência de doença orgânica que possa explicar os sintomas; ausência de evidências de que a dispepsia é aliviada pela evacuação ou associada à alteração na freqüência ou na forma das fezes.
Supõe-se que a DF seja um distúrbio psicossomático, com início multifatorial: fatores psicológicos, sociais e culturais que interagem com variáveis biológicas. A associação entre DF e depressão tem sido avaliada nos últimos anos mediante diferentes métodos e instrumentos de pesquisa. Uma revisão dos principais estudos sobre DF e sintomas psicológicos, citada por Silva et al. (2008), mostra que a prevalência de depressão ou de sintomas depressivos é alta nos dispépticos funcionais, indicando a existência de uma associação.
Recentemente, dando continuidade a preocupação com os distúrbios funcionais gastrointestinais e fundamentados na premissa de que os distúrbios funcionais apresentam alterações motoras e/ou sensitivas similares, foi sugerido em 2006 os Critérios de Roma III. Os Critérios de Roma III têm permitido uma melhor padronização da linguagem científica sobre os distúrbios funcionais e através de atividades contínuas entre especialistas de diversos países, desta vez inclusive com participação de membros de países em desenvolvimento como o Brasil, revisaram os Critérios de Roma chegando ao novo Consenso denominado de Roma III. Os especialistas do Consenso de Roma III definiram que, para o diagnóstico de distúrbio funcional gastrointestinal, é necessário que os sintomas tenham se iniciado há, no mínimo, 6 meses e que estes sintomas estejam presentes e ativos nos últimos 3 meses.
É importante enfatizar alguns outros dados obtidos na anamnese que podem também ajudar no raciocínio clínico em busca do diagnóstico correto. Pacientes com dor abdominal persistente e refratária ao tratamento usual, história familiar positiva de neoplasia do trato gastrointestinal ou de doença ulcerosa péptica, vômitos persistentes, portadores de distúrbio endócrino-metabólico (diabetes mellitus, hipertireoidismo), uso de crônico de medicamentos (antiinflamatórios não-esteroidais - causa freqüente de lesões do trato digestivo alto, antibióticos, teofilinas, digitálicos, ferro), além de fatores dietéticos como o uso da cafeína e hábitos como alcoolismo e tabagismo, também merecem consideração na abordagem do paciente dispéptico na tentativa de afastar causas orgânicas da dispepsia.
A dispepsia pode ser causada por uma série de alimentos, medicamentos, doenças do trato gastrointestinal, além de doenças sistêmicas. Uma evidência de causa orgânica como responsável pelo quadro dispéptico é encontrada em menos de 40% dos pacientes, geralmente devido à doença ulcerosa péptica, doença do refluxo gastroesofágico, ou em menor proporção o câncer gástrico. Na outra metade não se detecta a causa estrutural dos sintomas sendo estabelecida à dispepsia funcional ou não orgânica (MOTTA, 2008)
Referências
DONALDSON, R. M. Dyspepsia. The broad etiologic spectrum. Hosp Pract, 22 (9A): 41-9, 1987.
HORROCKS, J.C.; De DOMBAL, F. T. Clinical presentation of patients with "dyspepsia". Detailed symptomatic study of 360 patients. Gut 19(1):19-26, 1978.
MOTTA, R. Abordagem do Paciente com Dispepsia. Endoclinic: especialidades médicas. 2008. Disponível em: http://www.endoclinic.com.br/ler.php?id=1. Acesso em: 06 fev 2009.
OLIVEIRA, S. S. Prevalência de dispepsia e fatores sociodemográficos. Rev Saúde Pública, 40 (3):420-7, 2006
SILVA, R. A. et al. Dispepsia funcional e depressão como fator associado. Arq Gastroenterol, v. 43, n. 4, p. 293-298, 2008.