13 de novembro de 2009

O Homúnculo de Penfield e a Semiologia

Por Daniel Espíndola Ronconi Estudante de Graduação em Medicina da UFPB / Aluno do Programa Institucional de Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC/UFPB) Resumo
Desenvolvido na década de 1940, o homúnculo de Penfield revolucionou o raciocínio clínico da neurologia moderna. Através de um mapeamento do córtex cerebral, foi possível representar diversas regiões do corpo em sua superfície relacionando-as diretamente com suas funções, tornando, assim, a neurosemiologia clínica mais eficiente. Palavras-chave: Neurologia, diagnóstico, cérebro. Em meados dos anos 1940, o neurocirurgião canadense Wilder Penfield (1891-1976) estava diante de centenas de pacientes com epilepsia intratável clinicamente. Ao perceber que seus pacientes experimentavam uma aura antes das crises, pensou que se pudesse induzi-las, através de uma leve estimulação elétrica no córtex cerebral, encontraria, assim, o foco da crise epiléptica e sua remoção levaria à cura. Utilizando apenas anestesia local, os pacientes eram mantidos conscientes enquanto Penfield abria seus crânios, localiza os focos epileptogênicos e os removia. Ele aproveitava para estimular outras regiões do parênquima e solicitava que o paciente descrevesse o que estava sentindo. Penfield ficou surpreso com o resultado, pois além de alguns efeitos esperados (motores e sensoriais), os pacientes forneciam respostas cognitivas complexas, envolvendo vários sentidos, como visão e audição, que representavam memórias de fatos passados.
Dando continuidade a suas investigações, Penfield passou a identificar as relações de algumas áreas do córtex cerebral com as diversas regiões do corpo humano, concluindo que havia uma proporcionalidade do tamanho destas áreas corticais com as funções periféricas (como precisão do movimento muscular ou densidade de receptores na superfície do corpo). Com isso, foi possível desenvolver um mapa cerebral no qual diferentes regiões corporais eram representadas no córtex, porém de uma forma diferente (tamanho e disposição) de como eram encontradas no corpo, idealizando o famoso homúnculo (tanto sensorial quanto motor). O homúnculo aparecia, então, como homem deformado, com algumas regiões maiores (muito maiores!) e outras menores do que eram na realidade.
Sabbatini (1998) afirma sobre o homúnculo que
No homúnculo motor, a região correspondente à boca e à língua ocupava uma área muito grande do córtex motor, assim como a do polegar e dos dedos da mão (regiões de movimentos complexos e muito finos), ao passo que a região correspondente às nádegas, pernas etc., ocupavam uma área relativamente muito menor (por terem movimentos mais grosseiros). No homúnculo sensorial, os lábios e as bochechas e as pontas dos dedos eram as que apareciam com maiores áreas, uma vez que são as mais sensíveis do nosso corpo, por terem mais sensores por centímetro quadrado que qualquer outra área do corpo, e ocupando, portanto, uma área desproporcionalmente maior do córtex.
E qual a importância do homúnculo de Penfield para a investigação semiológica? Ora, se há uma correspondência de regiões do córtex motor e sensitivo com áreas do corpo, fica mais fácil diagnosticar a topografia de lesões/distúrbios cerebrais a partir da anamnese e do exame físico. Assim, é necessário conhecer a disposição do homúnculo no córtex para que, diante de um exame físico alterado, possa ser feita a correlação clínico-semiológica. Na figura 1 é possível ver a disposição do homúnculo, tanto no córtex motor, quanto no sensorial.

Figura 1- Disposição do Homúnculo de Penfield no córtex sensorial e no córtex motor. Diante de um paciente com déficit motor em membros inferiores, deve-se pensar em uma lesão na porção mais sagital paramediana; diante de uma paralisia facial central, pensa-se em lesão da região mais lateral do córtex. A mesma correlação pode ser feita para pacientes com déficits sensitivos. A importância de conhecer a disposição do homúnculo não reside apenas nesse ponto. Diante de um paciente com suspeita clínica de acidente vascular cerebral (déficit motor ou sensitivo súbito, sem qualquer oura causa aparente [NITRINI, 2003]), é imprescindível para que se torne possível diagnosticar qual o ramo arterial envolvido no processo. Observe-se a figura 2. Nesta, vê-se que cada artéria cerebral é responsável por um território cortical e que, se sobrepormos a esta imagem a do homúnculo, perceberemos que, de certa forma, cada artéria é responsável pela “irrigação” de uma parte do corpo.

Fig. 2. Irrigação arterial do cérebro dividida conforme o território vascularizado por cada uma das três principais artérias do cérebro (A. cerebral anterior; A. cerebral média e A. cerebral posterior). Fonte: Foto Search: www.fotosearch.com/LIF119/cbraiart/ Imagine-se o seguinte caso: uma paciente, sexo feminino, 65 anos, chega ao consultório com história de déficit motor súbito grau III em membro inferior direito há cinco dias e que o paciente percebeu quando acordou, pela manhã. Não havia, na história clínica, qualquer outro fato que pudesse explicar a sua queixa. Qual seria a principal hipótese diagnóstica? E qual seria o território vascular acometido? Déficit súbito, sem outro dado que possa explicá-lo, devemos pensar em etiologia vascular e, pela epidemiologia, em acidente vascular encefálico (AVE). Ao se olhar o homúnculo de Penfield vê-se que o membro inferior localiza-se na região sagital paramediana e que esta região faz parte do território vascular da artéria cerebral anterior. Assim, provavelmente trata-se de um AVE isquêmico que afetou a artéria cerebral anterior ou um de seus ramos do lado esquerdo, uma vez que o déficit é no membro inferior direito. Mais do que um desenho bizarro, o homúnculo desenvolvido por Penfield foi e continua a ser uma importante arma para o desenvolvimento do diagnóstico clínico em muitas enfermidades neurológicas. Em uma medicina cada vez mais baseada em exame complementares e pouco raciocínio, a exatidão do homúnculo é um dos muitos motivos que faz com que a clínica neurológica seja apaixonante. Referências GUYTON, A. C.; HALL, J. E. Tratado de Fisiologia Médica. São Paulo: Elsevier, 2006. NITRINI, R. ; BACHESCHI, L. A. A Neurologia que todo médico deve saber. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2003. PENFIELD, W.; RASMUSSEN, T. The Cerebral Cortex of Man: A Clinical Study of Localization of Function. JAMA. 206(2): 380, 1968. PORTO, C. C. Semiologia Médica. 5a. Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. SABATTINI, R.M.E. A história da estimulação elétrica cerebral. Revista Cérebro & Mente, 18, Jun/Ago, 1998.

Imagem inicial desta postagem: Wilder Penfield http://blog.m3.com/neurosurgeons/20070926/Homuncle_de_Penfield