23 de janeiro de 2010

Quem tem medo de Sigismund?


O médico neurologista judeu-austríaco, fundador da Psicanálise, Sigismund Schlomo Freud, alterou seu nome para Sigmund Freud em 1877.
Freud, além de ter sido um grande cientista e escritor, é considerado, assim como Charles Darwin e Karl Marx em seus respectivos campos, mentor de uma revolução no âmbito do conhecimento humano: a idéia de que somos movidos pelo Inconsciente.
O pensamento freudiano tem defensores e críticos, mas sempre servirá como um dos pólos do debate sobre o psiquismo e como matriz comum para as diversas escolas da psicanálise e para praticamente todas as áreas psíquicas.
Freud viveu em uma sociedade de forte repressão sexual. Na atualidade, em uma sociedade sexualmente mais liberalizada, talvez as neuroses clássicas descritas por ele já não sejam mais encontradas. No entanto, as sociedades modernas ainda geram culpa e neurose. Contudo, é possível supor que a explicação psicanalítica decorra de peculiaridades do século XIX, embora Freud tenha transferido inapropriadamente para outras épocas, anteriores à dele, o sistema de repressão do período vitoriano, supondo que as forças atuantes naquele momento teriam agido também na Idade Média (LEITE, 1992).
Vive-se em uma sociedade do individualismo e da exigência de êxito e sucesso para cada pessoa. Kehl (1996) afirma no livro "Psicanálise e o Contemporâneo", que a frase já banalizada "Freud explica" é empregada para fundamentar e desculpar nossos atos através da explicação das motivações inconscientes, que serviriam assim, como justificativa para o exercício da "soberania narcísica do cidadão". Parece bem contemporânea essa concepção, na medida em que a construção do indivíduo moderno implica um verdadeiro "culto do eu".
Vestir-se de acordo com a última moda, cultuar a vaidade perfeccionista e o consumismo são valores cada vez mais vistos na sociedade contemporânea. O imperativo do sucesso também faz parte disso. Temos quase uma "obrigação" de conseguir sucesso... Somos bem narcisistas, não? Não falo do narcisismo na sua conotação do "belo", mas na concepção de que devemos ser sempre o "melhor" e aparecer como o melhor.
Na linha do ceticismo, tentando desmistificar Freud, Lopes (2008) diz que a Psicanálise virou apenas dogma e exibicionismo literário, e que Freud "não explica quase nada". Por sua vez, Moon (2009) menciona as inúmeras revisões sofridas pela teoria psicanalítica de Freud nas duas últimas décadas, afirmando que esta foi "ofuscada" pelos efeitos obtidos com as drogas antidepressivas, que evidenciaram uma base neurobiológica para vários quadros psíquicos explicados antes pela Psicanálise.
A polêmica obra de Freud já foi objeto de inúmeras controvérsias, como qualquer outro corpus teórico de maior importância. Contudo, um dos biógrafos de Freud considera que ele é mais controverso agora do que nunca (GAY, 1989). Claro que uma teoria deve sempre ser revisada e estar em movimento, fazendo rever seus conceitos de base.
Porém, para alguns autores, a Psicanálise, hoje, pode ser vista como reacionária e ultrapassada. Apontam-se erros metodológicos e clínicos durante os seus 100 anos de existência. LEVY (1994), entretanto, considera que mesmo concordando com as críticas que se fazem à psicanálise atualmente, esta está fazendo uma completa reformulação a partir da observação dos excessos cometidas pelos psicanalistas mais ortodoxos. Esse autor afirma: "será possível falar em ultrapassado de algo que serve de base ou de apoio para tantas e tão variadas formas de terapia? Negar a existência do Inconsciente é como voltar a dizer que o mundo é quadrado."
Conta-se que Freud alertou seus seguidores sobre a chegada dos "homens da seringa". Teria com isso chamado a atenção, simbolicamente, para o avanço das neurociências – em particular a neurofarmacologia – quanto ao seu empenho na busca da origem e da terapia dos distúrbios mentais fundada na ciência empírica, capaz de pôr em dúvida o método que criara para o tratamento considerado não-experimental de pelo menos alguns desses distúrbios (MENDES, 1996).
Mendes (1996) afirma ainda que, apesar das críticas à teoria psicanalítica, Freud foi o pioneiro na concepção do Inconsciente, o primeiro a especular que os eventos traumáticos da infância podem influenciar a vida do adulto, e a postular que na psicanálise o paciente, não o médico, dirige a terapia, tirando este último de um papel autoritário para outro mais receptivo e dialógico. Nesse sentido, as várias formas de terapia pela fala poderiam ser consideradas um legado de Freud.
Na sua época, Freud sofreu muitas resistências no espaço universitário. Mas propôs o ensino da psicanálise nas escolas médicas como um curso elementar para os estudantes de graduação em Medicina. Há consenso quanto à questão de que, no Brasil, os objetivos prioritários dos cursos de graduação em Medicina devem ser orientados para a formação de médicos generalistas capacitados para atender às necessidades de saúde da maioria da população. Os currículos devem, pois, ser ajustados no sentido de relacionar tal necessidade com o conteúdo e a metodologia de ensino.
Porém, como afirma Lowenkron (1997), o inconsciente "fala", ou seja, os sintomas, mesmo quando observados no campo da Medicina Interna, podem ter um outro sentido, que remeta ao psíquico, um idioma que a princípio pode não ser compreendido, mas que é possível de ser decifrado: o interlocutor capaz de escuta analítica cria as condições de transformação desses sintomas em palavras, expressão de conflito psíquico, ampliando a inteligibilidade da comunicação.
Ainda segundo o referido autor, tornar-se um médico capaz de uma escuta atenta e de uma observação sensível, implica reconhecer, para além do corpo biológico do paciente, aquilo que por esse é falado e sofrido. A aquisição de tal habilidade envolve, além de conhecimento teórico, o desenvolvimento de atitudes adequadas. Assim, uma disciplina com conteúdos elementares em Psicanálise é importante na formação do estudante de medicina na descoberta da dimensão inconsciente dos fenômenos psíquicos, o que pode ser de grande valia na sua prática clínica.
Voltando às controvérsias em torno da teoria psicanalítica, salienta-se um polêmico artigo publicado na Revista Der Spiegel em 1998 pelo neurologista Eric Kandel, Prêmio Nobel de Medicina em 2000 e presidente da Society for Psychotherapy Research. Segundo ele, a Psicanálise, que existe há mais de um século, está fadada a perder cada vez mais influência. Nesse artigo, intitulado "A biologia e o futuro da psicanálise", Kandel (1998) considera totalmente ultrapassado o modelo id-ego-super ego do aparelho psíquico elaborado por Freud.
Os críticos da teoria psicanalítica afirmam que faltam evidências científicas das noções de um "inconsciente" e de um mecanismo de "repressão", assim como qualquer prova de que o pensamento ou o comportamento conscientes são influenciados por memórias reprimidas, noções fundamentais da teoria da Psicanálise.
Segundo Pena (1998), a terapia psicanalítica baseia-se na busca do que "provavelmente não existe", ou seja, memórias de infância reprimidas, assumindo o que provavelmente é falso (as experiências de infância provocam os problemas do paciente), além de associar-se a uma terapêutica incorreta, baseada na tentativa de trazer as memórias reprimidas ao consciente.
Por outro lado, há críticos que consideram que ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico. A Psicanálise estaria excessivamente fechada em modelo de indivíduo do tempo de Freud, não levando em consideração que há uma infinidade de outras causas que podem ser responsáveis pelos distúrbios mentais (BOLTANSKI, 1989; IBAÑEZ-GARCÍA, 1989). Já alguns neurocientistas afirmam que a Psicanálise funciona, mas pelo seu efeito placebo (AMARAL; SABBATINI, 1999).
Freud escreveu muito e escrevia muito bem. Suas "Obras Completas" compõem-se de 24 volumes e incluem ensaios relativos a aspectos da prática clínica, uma série de conferências que delineiam toda a teoria, além de monografias especializadas sobre questões religiosas e culturais. Há quem considere que atualmente a tendência é a de que suas obras devam ser valorizadas pelo valor literário: "Não é à toa que nas principais universidades americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura." (GRUMBAUM, Apud PASQUALI, 2010).
De qualque forma, Freud ainda parece ser o autor de língua alemã cuja tradução é de longe a mais debatida e estudada.
Mesmo nós, simples mortais, podemos ler seus livros. Ler Freud não é apenas para uns poucos "iniciados". Alguns pouco familiarizados com a literatura psicanalítica podem apreciar suas obras. Freud escrevia de modo agradável e com muita clareza.
Durante o Mestrado, li alguns dos livros da coleção "Obras Completas": "Interpretações dos Sonhos I", Duas Histórias Clínicas ("O Pequeno Hans" e o "O Homem dos Ratos"), além de "O Futuro de Uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e Outros Trabalhos" disponíveis na Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Inicialmente levada por uma necessidade acadêmica, pensava que seria uma tarefa difícil a leitura, porém me surpreendi como esta fluiu de forma relativamente fácil, principalmente na descrição e interpretação dos casos clínicos.
Ler Freud pode ser aprazível. Pode-se perceber o escritor impecável, seu talento narrativo e sua prosa rica, embora sua obra de Freud já tenha sido criticada como ingenuidade subjetiva, não tendo uma demarcação rígida entre prosa científica e prosa artística. Talvez por isso mesmo, a despeito dessa estética literária rígida, grande parte da obra de Freud seja de leitura agradável. Afinal, quem tem medo de Sigismund?

Referências

AMARAL, J.L. do; SABBATINI, R.M.E. Efeito placebo: o poder da pílula de açúcar. Rev. Cérebro e Mente. n. 9. Universidade Federal de Campinas: São Paulo, 1999.Disponível em http://www.epub.org.br/cm/n09/mente/placebo1.htm Acesso em: 23 jan 2010.
BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.
GAY, P. Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
IBAÑEZ-GARCÍA, T. La Psicologia Social como dispositivo desconstruccionista. In: Ibañez-García, T. El conocimiento de la realidad social. Barcelona: Sendai, 1989.
KEHR, M. R. Você decide... e Freud explica. In: Chalhub, S. Psicanálise e o Contemporâneo. São Paulo: Hacker Editores, Cespuc, 1996.

LEITE, D. M. O caráter nacional braseiro: História de uma ideologia. São Paulo: Ática, 1992.
LEVY, L. Freud: Atual ou ultrapassado? Trabalho apresentado no Delphos Espaço
Psico-Social, Rio de Janeiro, 1994. Disponível em: http://febrap.org.br/pdf/Atualizando_Cena.pdf. Acesso em 22 jan 2010.
LOPES, R. J. Freud não explica (quase) nada. Disponível em: http://ceticismo.net/ciencia-tecnologia/freud-nao-explica-quase-nada/. Acesso em 23 jan 2010.
LOWENKRON, F. O ensino da psicanálise na graduação médica. Relatório para o Seminário Psiquiatria e Psicanálise Hoje, XV Congresso Brasileiro ed Psiquiatria. Brasília, Outubro de 1997. Disponível em: http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/original3_02.htm. Acesso em: 22 jan 2010.
MENDES, E. G. Freud e a fisiologia. Estud. av. 10(27): 79-93, 1996.
MOON, P. Novas pesquisas questionam teoria da evolução de Darwin. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI26070-15224,00-NOVAS+PESQUISAS+QUESTIONAM+TEORIA+DA+EVOLUCAO+DE+DARWIN.html. Acesso em: 23 dez 2010
PASQUALI, S. Uma "Crítica" (Sic) a Psicanálise Freudiana... Disponível em: http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/2043394. Acesso em 23 jan 2010.
PENA, S. Psicanálise: A Oficialização da Mentira. 1998. Disponível em: http://www.priory.com/psych/vitpsica.htm. Acesso em 23 jan 2010.