28 de maio de 2010

Relato de Caso: Surto psicótico atribuível a interação medicamentosa

Os medicamentos que contêm a substância saciogênica sibutramina passaram a ter um controle maior de prescrição e venda a partir do dia 30 de março passado (30/03/2010). A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução (RDC 13/2010) que remaneja a substância da lista C1 para a Lista B2 dos medicamentos sujeitos à controle especial (Portaria 344/98).
Com a mudança, a sibutramina passou a ser classificada como psicotrópico anorexígeno e a tarja do medicamento muda de vermelha para preta. Além disso, esses medicamentos só poderão ser vendidos com receituário azul (em que a numeração é fornecida pela vigilância sanitária). Antes disso, a sibutramina era comercializada com receita branca, que não é numerada pela autoridade sanitária.
A sibutramina demonstrou ser um medicamento eficaz antiobesidade, porém deverá ser evitado ou ministrado sob rigoroso controle posológico, quando seu uso for concomitante com outros medicamentos que sejam metabolizados preferencialmente pela isoenzima 3A4 do sistema citocromo P450. Nessas condições, sempre haverá a possibilidade de ocorrer interações medicamentosas indesejáveis.
A propósito desta mudança, transcrevemos abaixo trechos de um artigo publicado em 2002 na Revista Brasileira de Psiquiatria por autores das universidades federais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, sobre uma possível interação medicamentosa envolvendo a sibutramina.
Paciente do sexo masculino, médico, 30 anos, medindo 1,73 m de altura e com cerca de 92 kg de peso corporal, iniciou tratamento para obesidade com um endocrinologista que lhe prescreveu sibutramina 10 mg, em uma única dose ao dia, pela manhã, além de uma dieta balanceada. Nessa fase, o paciente encontrava-se em plena atividade profissional, em ótimo estado geral, sem antecedente de transtorno mental, sem história, sinal ou sintoma de qualquer outra patologia nos últimos dois anos.
Em sua história pessoal pregressa e familiar, destacaram-se os seguintes fatos: (1) dois irmãos anteriores com deficiência mental congênita; (2) período de vida intra-uterino marcado por uma gravidez de risco, com ameaça de aborto sem hemorragia por volta do sexto mês; (3) nasceu de parto cesariana após período indefinido de sofrimento fetal; (4) dois parentes de segundo grau com dependência química ao álcool; e (5) um outro de terceiro grau com história de esquizofrenia que não ficou bem definida. Dois meses após o início do tratamento, o paciente apresentou uma perda significativa de peso, em torno de 20 kg. Houve discreta elevação de sua atividade psicomotora, que se caracterizava principalmente por aumento nas atividades de trabalho e por diminuição no tempo total de sono. Entretanto, o paciente relatava sensação de bem-estar e de felicidade com a perda de peso e com a vida cotidiana. Nesse período, procurou um dermatologista para fazer um tratamento para calvície, sendo prescrita finasterida em uma única dose de 1,0 mg ao dia, no período da tarde. Após 15 dias de uso conjunto da sibutramina com a finasterida, o paciente tornou-se logorréico, hiperativo, irritado e, por vezes, agressivo, com sinais concomitantes de alucinações auditivas e visuais, delírios de conteúdo predominantemente paranóide e, às vezes, místico, com notório prejuízo em seu desempenho profissional e interpessoal. Em torno do 30º dia, passou a criar histórias sem nexo, a ter delírios de controle e de inserção. Passou a acreditar que seu corpo adquiria formas femininas. Por esse motivo, passou a ter um comportamento de isolamento, evitando comparecer ao trabalho ou ter contato com outras pessoas, uma vez que temia ser visto como um homossexual. Em decorrência desses sintomas, apresentou humor deprimido, praticamente não dormia e alimentava-se precariamente. Com o uso da dosagem em dias alternados, apresentou discreta melhora clínica. Por não haver remissão total do quadro, foi, então, atendido em caráter de urgência por um psiquiatra, que prescreveu tioridazina 200 mg ao dia, sem obter resultado clínico satisfatório. O paciente foi atendido no Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Onofre Lopes. Após minuciosa avaliação clínica e de todos os aspectos envolvidos no caso, foi firmado o diagnóstico de surto psicótico paranóide, decorrente da interação medicamentosa da sibutramina com a finasterida. Esse diagnóstico ficou melhor categorizado pela CID-10 como transtorno psicótico devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas.
Mediante os fatos, foram, então, tomados os seguintes procedimentos terapêuticos: (1) retirada da sibutramina e manutenção da finasterida, tendo melhora acentuada do quadro clínico por volta do 12º dia. Todavia, persistiu um humor deprimido, sinais e sintomas menos intensos de alucinações auditivas, delírios paranóides e comportamento de evitação; (2) foi retirada a finasterida e prescrita risperidona 3,0 mg, meio comprimido às 20h, e clonazepam 2,0 mg, um comprimido às 20h, com a finalidade de acelerar o tratamento e dar mais qualidade de vida ao paciente. Após 30 dias, o paciente estava completamente assintomático, tendo sido retirada gradativamente sua medicação. Um ano após a alta clínica, estava totalmente assintomático e em pleno desempenho de suas atividades profissionais e socioculturais, pesando 76 kg em regime dietético regular e não fazendo uso de nenhuma medicação.
Os autores discutiram que o fato da finasterida e da sibutramina serem intensamente metabolizadas pelo fígado por meio do citocromo P450 e, preferencialmente, serem degradadas pela mesma isoenzima 3A4, levou o presente estudo a formular a primeira etapa da hipótese. A finasterida provavelmente apresentou, nesse sítio, uma maior afinidade pelas isoenzimas, principalmente pela 3A4, fazendo com que sua disponibilidade não fosse mais suficiente para o metabolismo adequado da sibutramina.
Em função do aumento de sua concentração plasmática e da ampliação de seu efeito farmacológico, a sibutramina passou a inibir a recaptação de serotonina e noradrenalina e a aumentar a liberação de dopamina na fenda sináptica.
A segunda hipótese foi formulada em função da intensidade dos sintomas, da sua correlação às doses e da farmacocinética dos medicamentos usados. Ambos os medicamentos possuem altíssima afinidade com as proteínas plasmáticas com maior índice de ligação para a sibutramina. Nesse sentido, tornou-se lógico supor que a sibutramina, ao ter seu metabolismo inibido e, consequentemente, apresentar aumento de sua concentração no plasma, deslocasse a finasterida de sua ligação para as proteínas plasmáticas. Por causa disso, aumentou a fração livre da finasterida e, por conseguinte, acelerou a metabolização pelas isoenzimas 3A4. O resultado final foi a diminuição do metabolismo da sibutramina.
Fonte:
SUCAR, D. D.; SOUGEY, E. B.; BRANDÃO NETO, J. Surto psicótico pela possível interação medicamentosa de sibutramina com finasterida. Rev. Bras. Psiquiatr. 24 (1): 30-33, 2002.