7 de setembro de 2010

Semiologia das Afasias

Por Rafael Lucas de Carvalho
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB
"Porque não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido" (Atos dos Apóstolos, 4:20)
Resumo
Afasia é uma denominação genérica utilizada para transtornos da linguagem decorrente de lesões cerebrais. As afasias têm sido classicamente divididas em dois grandes grupos: fluentes e não-fluentes, anteriores e posteriores, motoras e sensoriais. Apesar de não haver um consenso quanto à classificação semiológica das afasias, é necessário entender as suas variações, supostas relações com a topografia craniana e os aspectos fundamentais do exame clínico para a avaliação adequada do paciente disfásico.
Palavras-Chave: Afasia. Distúrbios da Fala. Sinais e Sintomas.
Apesar de o termo "afasia" significar estritamente uma completa ausência de linguagem, consagrou-se o seu uso no lugar da palavra mais correta, "disfasia", para se designar qualquer transtorno, incluindo os discretos, do uso simbólico das palavras. Assim, no presente texto, será empregado o termo "afasia".
As afasias são transtornos complexos que afetam a linguagem em vários níveis. Segundo Vendrell (2001), uma afasia consiste em um transtorno da linguagem ocasionado por uma lesão cerebral em uma pessoa que previamente podia se comunicar de maneira normal. Esta é uma condição singular, pois ao impedir uma comunicação adequada, o paciente adquire aparentemente o aspecto de enfermo psiquiátrico.
Nas afasias, raramente há uma abolição total das capacidades expressivas. Ainda que na fase inicial possa se observar isso, regularmente se conservam elementos falados, inclusive nas afasias mais graves. São considerados afásicos os sujeitos portadores de uma perturbação da linguagem em que há alteração de mecanismos linguísticos em todos os níveis, tanto do seu aspecto produtivo (relacionado à produção da fala), quanto interpretativo (relacionado à compreensão e ao reconhecimento dos sentidos) (MORATO et al., 2002). Sendo assim, as afasias afetam todas as modalidades linguísticas, a saber: falada, escrita, gestual, etc. As afasias têm sido classicamente divididas em dois grandes grupos: fluentes e não-fluentes, anteriores e posteriores, motoras e sensoriais. As afasias não-fluentes, cujas lesões são normalmente localizadas na parte frontal do cérebro, apresentam problemas de expressão, fala telegráfica, agramatismo, apraxia buco-lábio-lingual. Tais são as características das afasias de Broca, por exemplo.
As afasias fluentes, relacionadas às lesões localizadas na região mais posterior do cérebro têmporo-parietal, apresentam problemas de compreensão, ausência de déficits articulatórios, anomias, parafasias verbais ou semânticas. Tais são as características gerais das afasias de Wernicke, por exemplo (SILVA, 2007). Não existe uma classificação satisfatória das afasias. As classificações nunca dão conta da complexidade dos fenômenos. O sintoma pode ser visto até mesmo em função do modo como cada sujeito lida com suas dificuldades e com os limites impostos pela afasia. Em outras palavras, as classificações nada mais são que uma tentativa ilusória de se compreender regularidades subjacentes às alterações. A variação terminológica reflete as diferentes concepções de linguagem, de cognição e de cérebro, dos diferentes autores. Segundo Dronkers (2000 apud PINTO e SANTANA, 2009), apenas cerca de 50% a 60% dos pacientes com lesão na área de Broca possuem uma “afasia de Broca persistente” e apenas 30% dos pacientes com lesão na área de Wernicke são afásicos cronicamente. Há ainda cerca de 15% de pacientes com afasia de Broca crônica que não têm lesão na área de Broca e 35% de afásicos de Wernicke que não têm lesão na área de Wernicke.
A afasia de condução (afasia de Goldstein), por sua vez, é geralmente atribuída a lesões na região do fascículo arqueado (entre as regiões de Broca e Wernicke, o que explica o nome "condução"), e ocorre na maior parte das vezes devido a lesões no lobo parietal inferior. Estas informações exemplificam e confirmam o fato de que a tentativa de localizar a lesão e correlacioná-la diretamente com o sintoma nem sempre é correto. Com o advento e desenvolvimento dos exames de neuroimagem, a saber, tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética, as informações convergem para o fato de que múltiplas áreas cerebrais estão relacionadas com a linguagem e podem, ao sofrerem lesões, afetar a comunicação do indivíduo (PINTO; SANTANA, 2009). Entretanto, a necessidade de classificação de doenças é corrente nas Ciências da Saúde, e contribui para a organização do pensamento clínico. A classificação que se segue é constantemente empregada no meio médico (MELO-SOUZA, 2005).

(1) Afasia motora ou verbal, conhecida como afasia de Broca, onde há dificuldade de variável intensidade para expressar-se pela fala ou pela escrita e, habitualmente, associa-s à hemiparesia ou hemiplegia direita, por lesão do opérculo frontal e área motora adjacente do hemisfério esquerdo. (2) Afasia receptiva ou sensorial, denominada afasia de Wernicke, na qual o paciente apresenta de leve a extrema dificuldade para a compreensão da fala e da escrita desacompanhada de outro déficit motor, por comprometimento do giro superior e posterior do lobo temporal esquerdo. Nesta forma clínica, o paciente pode apresentar parafasia, na qual os vocábulos ou frases estão erroneamente colocados; perseveração, ou seja, repetição de um mesmo vocábulo, jargonofasia, cuja manifestação é o uso de palavras novas e incompreensíveis. (3) Afasia global, decorrente de lesão das duas regiões anteriormente mencionadas, constitui a forma mais importante de afasia, em virtude de sua gravidade. A compreensão e a expressão da linguagem ficam amplamente reduzidas. A hemiparesia ou hemiplegia direita está presente. (4) Afasia de condução, ou afasia de Goldstein, que apresenta-se como repetição de vocábulos (parafasia). Embora consiga ler e falar razoavelmente, o paciente não é capaz de repetir palavras que lhe são ditas. Há também componente amnéstico. Ocorre, geralmente, por comprometimento do giro supramarginal dominante. (5) Afasia amnéstica. Ainda que discutível, admite-se que esta forma decorra de lesão de pequena área na junção dos lobos temporal, parietal e occipital esquerdos. O paciente apresenta incapacidade para designar ou nomear os vocábulos ou o nome de objetos, conservando, contudo, sua finalidade. Assim, o indivíduo sabe para que se destina o pente, por exemplo, mas não consegue lembrar e expressar a palavra pente. (6) Afasia transcortical. Trata-se de alteração da linguagem muito semelhante a do tipo motora, em que o paciente apresenta compreensão e repetição razoáveis, dificuldade para a leitura e escrita e leve incapacidade para designar os nomes dos objetos. A lesão situa-se no hemisfério dominante próximo ao centro da linguagem de expressão ou área de Broca.”

Na verdadeira afasia motora não estão abolidas a compreensão do significado das palavras nem as suas lembranças, e sim a faculdade de empregar de modo adequado os músculos de linguagem. Essa afasia é produzida por uma lesão do centro de Broca.
A lesão do próprio centro de Broca é, sem dúvida, muito mais rara que a das vias que nele terminam ou que dele saem, e cuja lesão produz o quadro clínico da afasia. Nos casos de hemorragia na cápsula interna no lado esquerdo, frequentemente produz-se uma afasia motora, por interrupção do sistema de vias que do centro de Broca seguem para os músculos de linguagem.
A análise clínica da linguagem deve envolver os distúrbios da expressão verbal (fala e escrita), da recepção verbal (áudio e visual) e da atividade gestual, excluindo-se, todavia, os distúrbios mentais patentes.
Como examinar clinicamente o paciente com afasia? A avaliação de um paciente com suspeita de afasia requer paciência do examinador. Além disso, há necessidade de uma sistematização do exame e, finalmente, um ambiente adequado. A análise de tais distúrbios em conturbadas salas de emergência nunca deveria ser tomada como definitiva. Pacientes com reais disfasias deveriam ser reavaliados apropriadamente e, persistindo dúvidas, especialistas em distúrbios de linguagem deveriam ser chamados a opinar.
É necessário verificar primeiro se compreende o que lhe é dito, fazendo, para tal, uma série de indicações (que feche os olhos, mostre a língua, apresente as mãos, etc.). Comprova-se sua maneira de falar, quando ele o faz espontaneamente ou ao responder ao que lhe é dito, ou quando solicitado a indicar o nome dos objetos e dizer palavras ou construir frases. Este exame pode ser feito ainda com mais detalhes com a apresentação de letras ou de cifras, separadamente. Eventualmente, pode ser verificado se o sentido musical se conservou, solicitando-se ao paciente que cante ou assobie. Também será examinado o modo como o paciente lê, fazendo-o ler em voz alta e, depois, em voz baixa; deverá ser interrogado sobre o que leu e, se o indivíduo é afásico, pede-se que confirme ou negue, com a cabeça, o significado das palavras. Por último, examina-se a sua maneira de escrever, convidando-o a fazer um ditado ou redigir por conta própria. Uma vez verificado que o paciente apresenta afasia, é necessário confirmar se é uma afasia motora, uma parafasia, uma surdez verbal ou uma afasia amnésica. Em duas doenças será necessário aprofundar ainda mais este exame: nos casos de tumor ou de abscesso cerebral com transtornos afásicos, aléxicos ou agráficos (DANTAS, 2008).
Segundo Trevisol-Bittencourt (1996), o seguinte esquema de investigação preenche os requisitos para um exame clínico essencial:
- O paciente tem dominância na mão direita ou esquerda? No caso de ser esta última, ele seria capaz de escrever com a mão direita também? - Tem algum problema de audição? Uni ou bilateral? Qual a intensidade? - Ele identifica sons musicais ou ruídos emitidos por objetos? - Qual o seu nível educacional? Conhece algum idioma estrangeiro? Entende e obedece aos comandos? - Ele compreende a natureza dos objetos exibidos individualmente e é capaz de identificar sua utilidade? - Ele entende o significado de gestos e de pantomima e demonstra capacidade para se fazer entender por estes recursos? - Sua fala espontânea é de bom padrão? Caso não, em qual extensão e qualidade ela está comprometida? - Ele emprega parafasias? Utiliza neologismos? Usa um jargão ininteligível? - Pode repetir palavras faladas ao seu ouvido? - Tem algum transtorno visual? Uni ou bilateral? Qual a gravidade? - Ele é capaz de ler? Ler alto e sem titubear? - Tem capacidade para identificar números? Realizar cálculos básicos? - Demonstra capacidade para escrever? Sua escrita é de boa qualidade? Reproduz textos ou gravuras apresentadas? É capaz de fazer ditados? - Quando uma série de objetos lhe são apresentados simultaneamente, ele é capaz de identificá-los de modo apropriado? Apontando? Falando? Escrevendo?
Por ordem crescente de importância, as causas mais comuns de afasia são: distúrbios vasculares, traumatismos cranioencafélicos que afetam o hemisfério esquerdo, processos inflamatórios, escleroses, abscessos e tumores e hematomas. De forma transitória, as afasias podem ser observadas durante uma uremia, no diabetes mellitus descompensado, nas intoxicações, nas crises epilépticas e de enxaqueca (FONTANA, 2005). Referências
DANTAS, A. M. Exame de paciente com doença neurológica. Disponível em: http://www.portaleducacao.com.br/medicina/artigos/6151/exame-de-paciente-com-doenca-neurologica. Acesso em: 07 set. 2010. FONTANA, A. M. Manual de Clínica em Psiquiatria. São Paulo: Atheneu, 2005.
NOVAES-PINTO, R. C.; SANTANA, A. P. Semiologia das Afasias: Uma Discussão Crítica. Psicologia: Reflexão e Crítica. 22 (3): 413-421 2009. MELO-SOUZA S. E. Sistema Nervoso. Exame Clínico In: PORTO, C.C. Semiologia Médica. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. MORATO, E. M. et. al. As afasias e os afásicos: subsídios teóricos e práticos elaborados pelo Centro de Convivência de Afásicos (CCA). Campinas: Ed. Unicamp, 2002. SILVA, R.C. O Estatuto de Repetição nas Afasias. Anais do Seminário de Teses em Andamento. Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, 2007. VENDRELL, J.M. Las afasias: semiologia y tipos clínicos. Rev Neurol. 32 (10): 980-986, 2001.
TREVISOL-BITTENCOURT, P. C. Considerações práticas sobre disfasias. Dendrito, 2:14-19, 1996.
Imagem da postagem: Obra cubista de Georges Braque "Castelo de La Roche-Guyon" (1909)