27 de fevereiro de 2011

Moacyr Scliar, Médico-Escritor

"A morte de Ivan Ilitch, do Tolstoi, é uma verdadeira lição de vida, e a prova de que alguns livros de ficção podem ensinar mais do que qualquer manual de medicina." "A gente nunca pode desistir de encontrar sentido no aparente absurdo da nossa existência."
(Moacyr Scliar)
Moacyr Scliar, médico sanitarista, escritor prolífico e membro da Academia Brasileira de Letras, morreu hoje. Foi um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea. Os temas dominantes de sua obra são a realidade social da classe média urbana no Brasil, a medicina e o judaísmo. Ainda na Faculdade de Medicina, começou a escrever histórias sobre suas vivências como estudante, depois reunidas em um livro, "Histórias de médico em formação." Mas o tema da medicina é recorrente em sua obra: "A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura", "Doutor Miragem", "Sonhos Tropicais", baseado na vida de Oswaldo Cruz, "A Majestade do Xingu", inspirado no sanitarista Noel Nutels, além de vários ensaios que escreveu sobre o tema. Segundo Scliar (2010), para a medicina, responder à pergunta do paciente, “o que vai me acontecer agora?” é sempre um desafio. "Um desafio que exige o desenvolvimento de habilidades especiais, tanto do ponto de vista científico como do ético e psicológico. E é um desafio que surge cedo na história da medicina. Podemos dizer que a arte do prognóstico antecipou mesmo a do diagnóstico" (SCLIAR, 2010, p. 14). Em uma das muitas entrevistas que concedeu, disse que gostaria de ser lembrado no futuro como alguém que amou as pessoas, amou seu país e sua cultura, amou a literatura, amou a medicina (http://livrosrevisados.forumeiros.com/t116-entrevista-moacyr-scliar).

Ele dizia que acreditava em inspiração como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas, como o sonho, por exemplo. Mas, para ele, só inspiração não era suficiente. Afirmou: "Não preciso de silêncio, não preciso de solidão, não preciso de condições especiais. Preciso só de um teclado."
Sobre o início de sua obra literária, disse:

[...] Tenho o livro número um e o número zero. O livro número zero resultou das minhas histórias como estudante de Medicina. Com essa vivência ia escrevendo e publicando meus contos no jornal da faculdade, que se chamava Bisturi. Alguns colegas achavam estranho esse negócio de escrever historinha e outros gostavam muito. E esses que gostavam me disseram para publicar um livro. Próximo à época da formatura... isso é interessante, porque faz exatamente 40 anos, e o livro saiu nesta época, outubro, novembro... Procurei um amigo que tinha uma pequena editora. Ele não levava fé nenhuma, e com toda a razão, mas como era amigo não podia dizer que não. Fizemos 500 livros. O título era “Histórias de um Médico em Formação”. Foi um sucesso, porque meus pais obrigavam todo mundo a comprar. Minha mãe ia de porta em porta dizendo: “Olha, saiu o livro do meu filho”. Houve alguns comentários, é claro, aí comecei a reler o livro e me dar conta de que tinha algumas coisas que estavam mal redigidas, algumas histórias mal construídas, mal terminadas. Era um livro de amador. Olha, entrei em depressão e comecei a achar que tinha me enganado, que só eu achei que era escritor. E decidi trabalhar só com Medicina. Nos seis anos seguintes continuei a escrever, é claro, mas daí eu aprendi. Escrevia, guardava, depois relia e seis anos depois tinha uma coleção de histórias e, tinha certeza, era o melhor que eu poderia fazer. [...] Trecho de Entrevista concedida por Moacyr Scliar - Disponível em: http://www.revistapress.com.br.

Em sua tese, defendida em 1999, "Da bíblia à psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica", analisa as ideias sobre saúde, doença e prática médica na cultura judaica. Mostrou que, como em outras culturas, essas idéias sao moduladas pelo contexto histórico, social, econômico e cultural. Quatro fases ou períodos sao identificados nesta trajetória, que abrange um período de três milênios: fase teológica ou bíblica; fase teológico-filosófica, ou talmúdica; fase médico-filosófica; fase moderna. Estas fases correspondem, aproximadamente, a três modelos de pensamento médico que se sucederam na cultura ocidental: mágico-religioso, empírico e científico. Em cada fase ou período há um figura polarizadora do pensamento sobre saúde e doença e da prática médica: o sacerdote, rabino, o filósofo, o médico com formaçao científica, codificada (SCLIAR, 1999). Para Guimarães (2005), a intensidade da ironia scliariana é característica de uma espécie de parábola contemporânea, que combina a fantasia com a tragicômica realidade. "Scliar cria narrativas aparentemente simples, semelhantes às do imaginário infantil que, na verdade, devem ser entendidas como metáforas, no universo adulto" (GUIMARÃES, 2005, p. 13). Scliar deixa legado fundamental e diverso, com uma grandiosa obra literária, sem deixar de lado sua carreira médica. Moacyr Scliar também tinha profundo conhecimento da história da medicina.

Referências GUIMARÃES, L. C. A ironia na recriação paródica em novelas de Moacyr Scliar. [Tese] São Paulo: Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, 2005. Disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/exlibris/bd/bas/33004048019P1/2005/guimaraes_lc_dr_assis.pdf. Acesso em: 27 fev. 2011. SCLIAR, M. A difícil arte do prognóstico. CREMESP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. 50: 14, 2010. http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=459 SCLIAR, M. J. Da bíblia à psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica. [Tese]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 1999.Disponível em:portalteses.icict.fiocruz.br/pdf/FIOCRUZ/1999/scliarmjd/capa.pdf. Acesso em: 27 fev. 2011.