2 de setembro de 2013

A NARRATIVA DE UMA DÍVIDA HISTÓRICA DA MEDICINA E DA SOCIEDADE BRASILEIRAS

Ano de lançamento: 2013

"Holocausto Brasileiro" é um livro-documentário da premiada jornalista Daniela Arbex sobre o Hospital Colônia de Barbacena, na cidade homônima situada na serra da Mantiqueira, Minas Gerais, denominado Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB) em 1980, mas fundado em 1903 a 165 km de Belo Horizonte. Mais de 60.000 pessoas foram exterminadas, morrendo de fome, frio e diversos tipos de doenças no Hospital Colônia de Barbacena. A obra narra o que hoje se considera uma tragédia representativa de uma dívida histórica da sociedade brasileira e da medicina, em relação aos “loucos” de Barbacena.
A obra de Daniela Arbex é bem documentada, apresentando acervo fotográfico de reportagens jornalísticas e organizado em torno de histórias pessoais e entrevistas com trabalhadores do manicômio, médicos e pacientes sobreviventes.
Esse manicômio hospitalar funcionou por décadas como um depósito onde seres humanos eram jogados para esperar a morte, onde eram mal alimentados, viviam em condições sub-humanas, sob tratamentos, experimentais ou aplicados por profissionais sem qualificação. Havia venda sistemática de cadáveres (que eram muitos e apareciam diariamente) e comercialização de ossadas, além da exploração de trabalho escravo dos pacientes. Por várias ocasiões o hospital foi denunciado com alarde na imprensa, reivindicando-se a tomada de atitudes  por parte do poder público, com as correspondentes promessas, mas era o completo esquecimento o destino dos que habitavam o Colônia, que continuava sua tenebrosa operação. Pelo exposto no livro, por meio de vasta documentação fotográfica, percebe-se que esse manicômio não pode ser comparado aos campos de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial, pois foi muito pior, não em quantidade de mortos - no caso do Hospital Colônia, cerca de 60 mil vítimas -, mas na proporcionalidade de tempo e tratando-se de um "campo da saúde", o cenário onde se desenrolou o genocídio estudado pela autora que, 30 anos após, deu voz aos sobreviventes dessa tragédia.
Quase ao final, contudo, o livro sai completamente de sua lógica e propósito ao relatar em detalhes a vida de um jornalista de "O Cruzeiro", que foi uma testemunha das atrocidades do local, autor de fotografias que registraram o Colônia em pleno funcionamento (presentes no exemplar), apenas mais uma testemunha que teve papel como denunciante, porém deixou cair no silêncio o grito, como um eco que por si apaga o próprio som. Esses se tornaram cúmplices. O extenso detalhamento da vida do jornalista corta o raciocínio e os retratos dos sobreviventes e dos mortos presentes nas memórias. Sem propósito.
Os registros nos trazem a angústia das vítimas e a revolta pelo silêncio dos algozes, todos que tinham conhecimento de qualquer forma e não denunciaram, até surgir um médico que por décadas insistiu na desumanização do tratamento e, mesmo com ameaças de retaliações, inclusive envolvendo o Conselho Regional de Medicina, conseguiu deixar algumas histórias vivas do que viria a ser o "holocausto brasileiro".

Citações diretas da obra:
"Vinte e oito presidentes do Estado de Minas Gerais, entre interventores federais e governadores, revezaram-se no poder desde a criação do Colônia, entre 1903 e 1980. Outros dez diretores comandaram a instituição nesse período, alguns por mais de vinte anos, como o médico Joaquim Dutra, o primeiro dirigente. Em 1961, o presidente Jânio Quadros colocou o aparato governamental a serviço da instituição para reverter "o calamitoso nível de assistência dada aos enfermos". Deputados mineiros criaram comissões para discutir a situação da unidade dez anos depois. Nenhum deles foi capaz de fazer os abusos cessarem. Dentro do hospital, apesar de ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas"
"A intervenção cirúrgica no cérebro para seccionar as vias que ligam os lobos frontais ao tálamo era recorrente no Colônia. Embora tenha sido considerada uma técnica bárbara de psicocirurgia, a lobotomia ainda é realizada no país."
"Sem portão [o Cemitério da Paz], o que se vê hoje é uma área de 8 mil metros quadrados tomada por mato alto e detritos. (...) Esse é o local onde são mantidos os 60 mil mortos do Colônia. Enterrados em covas rasas, as vítimas de tratamento cruel não alcançaram respeito nem na morte. Seus túmulos vêm sendo depredados ao longo do tempo, e nem mesmo os ossos revelados conseguiram reverter o descaso imposto aos excluídos sociais."
"A partir de 1960, a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma macabra indústria de venda de corpos"
"- Por que esse menino está amarrado nesse solão? - Se soltar, ele arranca os olhos das outras crianças. Tem mania - respondeu a mulher, com naturalidade. - E quantos olhos já arrancou? - Nenhum - disse a religiosa."
"A violência ocorrida contra a menina e, mais tarde, com outros tantos internados em Oliveira não foi responsável pela interdição do hospital de lá, sim uma telha que caiu sobre a cabeça do diretor. Quando o fechamento foi anunciado, em 1976, trinta e três crianças de Oliveira foram enviadas para o Colônia, em Barbacena. Esperavam resgatar, no novo endereço, a infância roubada. Logo perceberam que os tempos eram novos, mas o tratamento, não,"
"Quando o homem chegou ao hospital, sua expressão era endurecida. A de Roberto, ao contrário, se iluminou. Com nove anos, ele correu para abraçar o pai, que não via há quase um ano. A emoção do encontro fez o menino ter uma pequena incontinência urinária. Quando chegou perto do pai, algumas gotas de xixi molharam a calça que estava vestindo, a melhor roupa que as funcionárias encontraram. O goiano até tentou esconder o desconforto diante daquela criança desajeitada, mas não conseguiu. Constrangido com o aspecto do filho, o pai disse que sairia para buscar almoço. Deixou a comida lá e nunca mais apareceu. A indiferença paterna atingiu em cheio o menino  gordinho e sensível. Deixado para morrer no Colônia, ele foi definhando. Não sucumbiu de fome, nem de frio, como os outros, mas de tristeza."
"(...) foi sentenciado à pena de morte: a internação no Colônia."

Pode-se argumentar que a resposta mais apropriada da Medicina como disciplina seria focar nas lições éticas que se podem retirar daquelas tragédias humanas. Como foi que tantos psiquiatras participaram desse tratamento atroz contra indivíduos considerados mentalmente doentes? Como foi que demorou tanto para a psiquiatria enfrentar esse episódio sombrio em nosso passado não tão distante? O que podemos aprender com esse período e como podemos transmitir essas lições para sucessivas gerações de médicos? Esta foi a primeira vez na história brasileira em que os profissionais de saúde mental se envolveram na aniquilação sistemática de seus pacientes. Como se pode garantir que isso nunca mais aconteça? Durante o período em que se desenrolava o extermínio de seres humanos no Hospital Colônia, o seu corpo clínico permitiu que pressões políticas influenciassem seu manejo clínico, que é sempre perigoso e eticamente problemático. A atitude dos psiquiatras para com seus pacientes com esquizofrenia durante esse período indica da maneira mais perversa como a ciência pode ser afetada por considerações externas. No final da década de 1970, o psiquiatra Ronaldo Simões Coelho denunciou as atrocidades cometidas no CHPB no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, o que acarretou represálias à sua vida profissional. Outro médico que chegou a fazer denúncias foi Francisco Paes Barreto, que por essa razão passou a responder a um processo administrativo no Conselho Regional de Medicina, tendo sua ética profissional posta em dúvida. 

Daniela Arbex afirma no livro que no hospital, “apesar de ninguém ter apertado o gatilho, todos carregam mortes nas costas” (Arbex, 2013, p. 43). São mais de 60 anos sem punição dos culpados pelas atrocidades ocorridas naquele manicômio dos horrores. Ela também citou as palavras do psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta antimanicomial, que chegou a visitar o CHPB: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta” (Arbex, 2013, p. 207). 

Embora o horror antissemita durante a Segunda Guerra Mundial tenha sido extensivamente narrado, o genocídio nazista concomitante de pacientes psiquiátricos é muito menos conhecido. Estima-se que 250 mil indivíduos com esquizofrenia foram esterilizados e assassinados pelos nazistas. No final do livro, aparece a curiosa e estranha revelação de que parte do espaço territorial onde o manicômio estava edificado havia sido propriedade de Joaquim Silvério dos Reis, conhecido historicamente como o traidor da Inconfidência Mineira, o que acrescenta mais um toque de horror a essa narrativa que deveria ser lida por todos os médicos e estudantes de medicina. Como já propalado por muitos autores importantes, o processo de ensino-aprendizagem da ética e a luta contra o estigma em relação às pessoas com transtornos da saúde mental não podem ser empreendidos em um vácuo de precedentes onde a profissão médica transgrediu a dimensão da humanidade no Brasil.