4 de dezembro de 2013

Navalha de Hitchens na Ciência

Por André Augusto Lemos Vidal de Negreiros
Estudante de Graduação em Medicina da UFPB

Resumo
A elaboração de trabalhos científicos é um exercício cotidiano de construção de argumentos. Na prática da ciência, um pesquisador em grupo de cientistas pode, em um dado momento, questionar um argumento no qual o demais pesquisadores acreditam como verdadeiras. Entretanto, ao fazê-lo, terá o ônus de provar que aquele argumento não é confiável. Esta é a  chamada Navalha de Hitchens.

Palavras-Chave: Ciência. Epistemologia. Conhecimento.

Um paradigma científico, segundo Thomas Kuhn (1989), seria um aglomerado de argumentos compartilhados por um grupo definido, que permite a esse grupo delimitar quais seriam os problemas que deveriam ser objeto de estudo, assim como quais seriam os métodos de investigação aceitos por este grupo particular. A iniciação dos métodos de pesquisa seria realizada através da utilização do conjunto de procedimentos aceitos por essa comunidade científica (MATTOS, 2011).
Posteriormente às publicações das teses de Kuhn, muitos cientistas vêm discutindo a cerca da ciência e suas práticas. Knorr-Cetina (1999) evidencia que os cientistas não elaboram seus estudos somente em atenção ao paradigma científico da sua comunidade científica, porém também o fazem em consideração às alternativas de circulação e renovação do conhecimento para fora dos muros da comunidade científica. Dentro deste cenário de reflexão, propõe-se desmitificar a ideia que a ciência é um meio de descobrir a verdade, de evidenciar o que realmente acontece (MATTOS, 2011).
Nesse prisma, a construção de um trabalho científico pode ser interpretada como a elaboração de argumentos formados com o propósito convencer um determinado grupo de pessoas ou certa comunidade científica a qual o pesquisador pertence. Quando se desejar convencer alguém ou algum grupo através de argumentos, necessita-se, como premissa, a utilização de pressupostos que não são controversos, ou melhor, que seja, que estejam em comum com o público ao qual se dirige (MATTOS, 2011).
Santos (2000) ressalta o caráter fiduciário da comunidade científica, ou seja, ele enfatiza que o grupo de pesquisadores sempre toma como premissa o conjunto de conhecimentos já evidenciados como se fossem verdadeiros, logo, são desobrigados da avaliação por essa comunidade. Obviamente um pesquisador em grupo de cientistas pode, em um dado momento, questionar um argumento no qual o demais pesquisadores acreditam como verdadeiras. Entretanto, ao fazê-lo, terá o ônus de provar, antes de tudo, que aquele argumento não é confiável. Estabelece-se, desta forma, uma assimetria, pois, usualmente, admite-se que o pesquisador não necessita desperdiçar tempo e espaço em seus trabalhos científicos repetindo e fundamentando ideias nas quais sua comunidade acredita, no entanto, deve ater-se minuciosamente na argumentação de fatos que contrariam os pensamentos pressupostos pelo grupo de cientistas (MATTOS, 2011).
Entendendo a importância da construção de argumentos para prática da ciência, o provérbio em latim “Quod gratis asseritur, gratis negatur” foi largamente utilizado pelo mundo desde o início do século IXX, porém ganhou notoriedade no século XXI por Christopher Hitchens, que utilizou este provérbio na língua inglesa, “What can be asserted without evidence can be dismissed without evidence” e, adaptando para o português, significa  “O que é afirmado sem argumentos pode ser descartado sem argumentos”. A Navalha de Hitchens, como ficou conhecida mundialmente, alicerça-se nos preceitos da epistemologia, com a utilização do ônus da prova (HITCHENS, 2007).
Tomando como exemplo um debate sobre determinado tema, parte-se da premissa de que quem faz a afirmação da existência de algo é quem tem o ônus da prova, ou seja, quem defende a posição de existência de algo é quem cabe o encargo de oferecer argumentos necessários para sustentá-la. No momento em que um cientista, filósofo ou qualquer outro debatedor afirma uma proposição, porém sem provas ou argumentações factíveis, essa afirmativa não terá valor argumentativo e deve ser desconsiderada, pois não tem um raciocínio lógico, tratando-se, portanto, de uma falácia.
O processo do convencimento estabelece-se por duas formas básicas. A primeira, o pesquisador precisar se autoconvencer dos fatos que o levaram a pesquisar sobre determinado tema; a segunda, o pesquisador necessita convencer os demais pares de sua comunidade científica ( MATTOS, 2011).
Santos ( 1989) pode descrever com mais detalhes como se estabelece este processo de convencimento: 
[...]  mas o cientista, se for competente, isto é, se conhecer bem a comunidade científica a que      se dirige, sabe que a tradição intelectual instaurou uma duplicidade, e que, por isso,  os     expedientes que usa para se autoconvencer não coincidem e não tem de coincidir exatamente     com aqueles que podem convencer a comunidade científica. Advertido dessa duplicidade, adota as medidas necessárias durante o processo de investigação para a neutralizar, ou seja,     para que os resultados a que chega sejam tão convincentes à luz dos expedientes privados [...]      como à  luz dos expedientes públicos [...]. Um cientista que tem particular confiança nos  métodos qualitativos pode estar plenamente convencido dos resultados a que chegou por via  da observação participante, mas mesmo assim, sabendo que se dirige a uma comunidade científica quantofrênica [...] pode acautelar-se com a realização de um inquérito por   questionário [...] 
Portanto, a definição dos métodos científicos pelo pesquisador surge da sua relação contínua com comunidade científica a qual participa. De um lado, o investigador personifica essa comunidade e seleciona os instrumentos de pesquisa que servirão como argumentos para seu autoconvencimento. De outro, o pesquisador prevê as críticas que receberia por parte dos pares de sua comunidade que não concordam de alguma forma com os argumentos que construíram o autoconvencimento. É a partir daí que se estabelecem as escolhas metodológicas (MATTOS, 2011).
            Santos (1989) enfatiza que: 
para se convencer a si próprio dos seus resultados e dos vários trâmites para os atingir, o cientista sabe que tem que pôr constantemente o carro à frente dos bois, mas sabe também que,  para convencer a face pública da comunidade científica, tem de, constantemente, passar o  carro para trás dos bois.
Todo cientista deve entender esta duplicidade, ou seja, deve dominar as regras que permeiam o processo de elaboração argumentativa em uma comunidade científica a qual está engajado, e deve ter ciência que estará sujeito a transgressões por parte da comunidade.  Por isso, a produção do conhecimento científico está estreitamente relacionada ao exercício diário da crítica. O treinamento da autocrítica, da previsão da crítica da comunidade científica a qual faz parte, porém também deve estar preparado em receber a crítica dos pares e de criticá-los (MATTOS, 2011).
O processo de publicação de artigos científicos estima a elaboração do exame crítico pela comunidade científica. Por exemplo, um artigo, quando submetido a um periódico, irá passar  por uma avaliação crítica pelos pares,  e só será enviando para publicação se o pesquisar convencer os avaliadores de sua veracidade. Então, uma vez publicado, será alvo de críticas por todos os pesquisadores que fazem a leitura daquele periódico (MATTOS, 2011). 
A filosofia iluminista foi uma das principais fontes de inspiração do pensamento de Hitchens, este intelectual polêmico e brilhante, morto em dezembro de 2011.

Referências
MATTOS, R.A. Ciência, Metodologia e Trabalho Científico (ou Tentando escapar dos
horrores metodológicos).  In MATTOS, R. A.; B APTISTA, T. W. F.  (Orgs.)  Caminhos
para análise das políticas de saúde, 2011.  p. 20-51.  Disponível em: www.ims.uerj.br,/ccaps.
HITCHENS, C. Deus Não é Grande: como a religião envenena tudo. Doze Books, Nova York, 2007.
KNORR-CERINA, K.  Epistemic Cultures. Cambridge, MA:  Harvard University Press, 1999.
KUHN,  T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989.
SANTOS, B.S.  Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
SANTOS, B.S. Para um novo senso comum. A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.