6 de julho de 2008

Hemoptise ou Hematêmese: Eis a Questão


Anamnese apresentada pelo aluno do curso de Medicina / CCM / UFPB Albecy Viana de Oliveira, durante o primeiro módulo da Disciplina de Semiologia, período 2008.1.

A discussão desta anamnese no grupo de aulas práticas da disciplina suscitou a discussão do diferencial semiológico entre hematêmese e hemoptise. No caso desta paciente, os dados de anamnese indicavam mais fortemente a possibilidade de hematêmese. A dúvida permaneceu. Não tínhamos dados de exame físico ainda. Albecy acompanhou posteriormente o seu esclarecimento diagnóstico, e nos deparamos com a surpresa, que ocorre freqüentemente em clínica médica geral, de que a paciente apresentava, na verdade, uma cardiopatia como causa do quadro de sangramento. Tratava-se de uma hemoptise maciça. Não havia outros indícios clínicos de doença cardíaca à anamnese.
A seguir, apresenta-se a anamnese dessa paciente. O exame físico não está disponível, já que a anamnese foi colhida durante a primeira unidade da disciplina.
A figura acima mostra esquematicamente as causas de hemoptise. Clique para aumentar resolução.
Anamnese

Identificação: C.F.V, 61 anos, feminino, branca, aposentada, solteira, natural de ... (PB) e procedente de João Pessoa - PB.
Queixa Principal: Náusea e vômitos há uma semana
História da Doença Atual (HDA):
Há uma semana a paciente relata sentir náuseas até uma semana atrás, quando piorou com episódio de hematêmese volumosa. Na ocasião, desmaiou e passou a apresentar intensa palidez. Ela relata sentir náuseas com mais freqüência pela manhã e vem perdendo peso há dois meses (4 kg), além de sentir, no mesmo período, anorexia e muita astenia. Apresenta, como sintoma associado, epigastralgia. Depois da piora, foi internada neste hospital.
Interrogatório Sistemático (IS):
Sintomas Gerais: alterações de peso, astenia e anorexia vide HDA, nega outros sintomas.
Pele e Fâneros: nega qualquer sintoma
Cabeça e Pescoço: Relata cefaléia; ouvido, nariz e seios da face: Relata sentir obstrução nos ouvidos e zumbidos há uma semana; cavidade oral: nega sintomas.
Respiratório: Relata tosse produtiva há 10 anos, e já se submeteu a exames, mas nada foi constatado. Nega outros sintomas respiratórios.
Cardiovascular: nega qualquer sintoma.
Gastrintestinal: vide HDA. Nega outros sintomas.
Osteoarticular: Relata artralgias na articulação do pé, que piora em clima frio.
Hematopoiético: Relata palidez há dois meses.
Psiquismo: Relata insônia há cinco anos. Irritabilidade, sentimento de culpa e tristeza freqüentes.
Antecedentes Pessoais Patológicos: já foi acometida de a sarampo, varicela, e parotidite infecciosa na infância. Na vida adulta, nega tuberculose, DSTs, hepatite viral, diabetes mellitus, hipertensão arterial, cardiopatias, epilepsia, febre reumática, asma brônquica. Nega alergias alimentares, ambientais e medicamentosas. Cirurgias e traumatismos foram negados. Hemotransfusão, uso de drogas ilícitas foram negados, bem como medicações de uso prolongado. Uma internação anterior no HULW, devido a "reumatismo".
Antecedentes Familiares: não há história de hipertensão, tuberculose, morte súbita, dislipidemias, asma brônquica, doenças mentais, alcoolismo, AVC. A avó e dois tios faleceram de câncer. Outros dois tios faleceram de cardiopatia. Sua irmã é diabética e a sobrinha tem intolerância ao glúten e à lactose.
Antecedentes Sociais: mora com irmã de 69 anos e sobrinha. Alimenta-se muito pouco. Nunca estudou, atualmente recebe aposentadoria. Trabalhou a maior parte da vida em casa, mas exerceu antes trabalhos manuais na roça. Evangélica. Renda familiar advém do salário da sobrinha. Suas relações interpessoais com a família são pobres, não há muitos laços afetivos, e conta com a ajuda de uma vizinha e que a acompanha no internamento atual. Não há história de tabagismo, nem etilismo. Tomou muitos banhos de açudes na infância, e nega contato com triatomíneos.

Os exames complementares revelaram os seguintes achados esclarecedores: O raios-X do tórax mostravam sinais sugestivos de congestão pulmonar bilateral, com área cardíaca aumentada. O ecocardiograma revelava aumento importante do átrio esquerdo e estenose mitral.
Essa paciente foi encaminhada para outro serviço hospitalar para realização de cirurgia cardíaca.
O sintoma mais importante da estenose mitral é a dispnéia de esforço, que pode ser acompanhada por tosse e sibilos. A paciente não apresentava dispnéia ou chiado no tórax. Seu quadro principal era de hemoptise e tosse, além da dor epigástrica. Hemoptise pode ocorrer em diversos graus e formas de apresentação na estenose mitral e, inclusive, ser a abertura do quadro clínico. Não havia antecedentes de febre reumática, mas a paciente relatava quadros de "reumatismo" anteriores, sem diagnóstico.
É fundamental o diagnóstico diferencial entre hematêmese e hemoptise. Quando o paciente relata que eliminou sangue pela boca, o primeiro passo a ser dado é comprovar se realmente se trata de hematêmese ou hemoptise, ou menos provavelmente, epistaxe e gengivorragia. Na hematêmese, o sangue geralmente é de cor escura, precedido por náuseas e vômitos ou dor epigástrica, podendo conter restos de alimentos. Na hemoptise, o sangue é vermelho vivo, espumoso, contendo pequenas bolhas de ar, podendo apresentar muco, e associado a tosse antecedendo o quadro de sangramento. É comum o paciente relatar um chiado no tórax antes da hemoptise, uma informação sugestiva, e que a paciente também não apresentava.

A estenose mitral reumática surge por comprometimento das cúspides mitrais, por fusão das comissuras, por envolvimento das cordoalhas ou por um processo combinado entre essas três partes do aparelho valvar. Se a estenose for grave, o aumento da pressão no átrio esquerdo e a hipertensão venocapilar pulmonar consequente provoca insuficiência cardíaca e, por conseguinte, acumula-se líquido nos pulmões (edema pulmonar). A causa predominante de estenose mitral é a febre reumática ou doença reumática.