28 de fevereiro de 2009

A vivência hospitalar nos deixa mais insensíveis?




A atuação médica é movida principalmente por dois grandes princípios morais: a preservação da vida e o alívio do sofrimento.
O estudante de medicina, dentro da sua formação, vai aprendendo a se comprometer com a vida. Toda a sua capacitação é voltada para a cura. E quando geralmente a morte se apresenta na prática hospitalar traz muita frustração e sentimento de impotência, pois existe um despreparo para lidar com este evento irreversível.
No hospital, no ensino chamado de "hospitalocêntrico", o problema do distanciamento do universo do doente por parte dos médicos e estudantes de medicina é mais crucial. Os currículos das Escolas de Medicina, centrados no hospital, são mencionados como um fator importante para a manutenção do modelo biomédico baseado na racionalidade técnica, e esse modelo, por sua vez, é responsabilizado pela chamada "desumanização" da Medicina, por parte de outros profissionais da área de Saúde e de intelectuais na área de Ciências Humanas.
Contudo, a tendência atual é que o ensino médico deixe de ser apenas racional e científico. As reformas curriculares apontam nesta direção. Assim, com uma formação humanística mais valorizada, o estudante de medicina deve aprender a acompanhar o paciente terminal e sua família. É preciso menos distância do estudante em relação a este cenário. Infelizmente, quando se fala de morte para o estudante de medicina, abordam-se ainda apenas conceitos biológicos, mecânicos e materialistas, esquecendo-se da concepção filosófica, cultural e social. Se não é proporcionada aos alunos de graduação em Medicina uma preparação para a morte dos pacientes, como fazem eles para enfrentar essa realidade? Tornam-se insensíveis para enfrentar mais facilmente a situação? O que sente um estudante de medicina diante da morte de um paciente que vem acompanhando?
Minha primeira vivência com a morte de um paciente foi no meu sexto período de graduação. Hoje aquele é o doente que mais lembro quando penso sobre a questão da morte de um paciente jovem. Era um paciente de cerca de 24 anos, portador de insuficiência valvar grave. Era proveniente do Sertão da Paraíba e nenhum familiar o acompanhava. Eu o visitava diariamente como estudante de medicina, sob orientação de meu professor, um grande clínico na cidade de Campina Grande. Este nosso paciente deveria ser submetido a uma cirurgia cardíaca em Recife, e faltavam poucos dias para que fosse transferido. Parecia compensado clinicamente, na medida do possível, pois sua lesão era gravíssima. Em um domingo em que fui visitá-lo, não estava mais lá em seu leito. Havia morrido à noite, de edema pulmonar agudo. E estava só, sem nenhum parente, nenhum conhecido, nenhum amigo.
Senti um misto de frustração, compaixão, mas também de culpa. Será que não poderia ter sido agilizada sua transferência para o outro hospital? Será que faltou fazer algo importante por aquele paciente? "O que eu estava fazendo ali?". Não tinha sido preparada para enfrentar a morte de um paciente ainda. Era muito jovem ainda para entender a necessidade de aceitar a idéia da morte de um doente.
Vários anos depois, já no segundo ano de Residência em Clínica Médica, no Hospital Universitário Lauro Wanderley, e após dois anos de residência médica em Pediatria, vivendo literalmente dentro de um hospital, acompanhei um paciente com um problema semelhante ao do doente do caso que relatei acima. Ele era jovem também e tinha uma valvulopatia, já com valva protética inserida, e estava em tratamento para endocardite infecciosa. Porém reagi de forma diversa diante de sua perda, embora este paciente tenha me lembrado aquele primeiro doente em estado grave que acompanhei quando estudante de Medicina, e apesar de ter maior responsabilidade sobre sua conduta clínica, já após na pós-graduação nesse momento.
Será que a vivência hospitalar nos torna mais insensíveis? Ou o amadurecimento e o entendimento facilitam o enfrentamento da situação, tornando as coisas menos complicadas? Nesse sentido, não há dúvidas de que é preciso passar por todo um processo de aprendizagem neste cenário. O tempo pode nos fazer aprender a lidar com os desafios e limites da profissão.
As pesquisas nesta área sugerem que durante o treinamento médico ocorre uma diminuição nas habilidades éticas e humanísticas dos estudantes (CRANDALL et al., 1993; SHORR et al., 1994), e especialmente mostram que há uma diminuição na sensibilidade ética (HEBERT et al., 1992). Por outro lado, no Brasil, Silva et al. (2005) observaram um aumento na sensibilidade ética, contrariando os dados da literatura internacional sobre este aspecto. Saiyd et al. (2005) chamam este fenômenro, verificado em médicos, de “calosidade emocional”, enquanto Meleiro (1999) denominou-o de “armadura profissional”. Tais comportamentos ajudariam os médicos a manterem essa imagem de “distanciamento emocional” (QUINTANA; ARPINI, 2002).
Há dados de pesquisa atuais que sugerem esse aspecto de distanciamento emocional do médico em relação ao sofrimento do doente. que o cuidado de pacientes que morrem em meio hospitalar é insuficiente e de má qualidade. Vários estudos têm mostrado que o atendimento terminal no hospital é deficiente no que diz respeito à melhora de sintomas físicos e à capacidade de abordar as necessidades emocionais e psicossocial dos pacientes. Em um estudo observacional em que foram observados 50 pacientes ditos terminais, observou-se que eles receberam apenas uma mínima atenção, tanto por parte dos médicos quanto da enfermagem (MILLS et al., 1994). Neste estudo, demonstrou-se que os sintomas físicos dos pacientes terminais estavam inadequadamente controlados, e cuidados básicos de enfermagem foram muitas vezes omitidos. Outra evidência mostra que as pessoas que morrem no hospital muitas vezes tinham dor, dispnéia, agitação e outros sintomas que são difíceis de controlar, e que, embora o paciente desejasse cuidados de conforto, muitos continuaram a receber tratamentos agressivos para sustentar vida até à sua morte (LYNN et al., 1997).
Voltando ao questionamento sobre o impacto que tem o estudante de medicina diante de determinados fatos da prática hospitalar, é importante salientar que a vivência emocional deste impacto é necessária. O impacto que sofremos ao nos depararmos com situações de vida e morte no início da carreira de Medicina é necessário para vencermos essa tenacidade que muitos profissionais de saúde possuem de que o que interessa é a vida, é curar a qualquer custo. A maioria dos estudantes de Medicina entra na faculdade motivada por uma idéia onipotente de Medicina retirada de fatos heróicos vistos na TV, cinema ou literatura, em que não há limites para a atuação médica. Raramente se ouve que entram na Medicina para "aliviar o sofrimento, consolar um doente e sua família".
De acordo com Caixeta (2005), essa onipotência quase nunca é quebrada durante o curso de graduação, assim como não é estimulado o lado hipocrático humanista e solidário que virá a ser a base da maioria dos procedimentos médicos. Tal desejo aparentemente humanista de "salvar vidas" esconde apenas onipotência, na maioria das vezes perigosa, porque é revestida por uma espécie de "obsessividade", que visa não exatamente ao bem-estar do paciente, mas sim ao preenchimento de um "ideal de ego", o ideal de ter sucesso sempre.
Assim, considero finalmente, a título de conclusão desta postagem, que a vivência hospitalar não nos torna insensíveis, mas as experiências que vivemos nesse contexto de dor e sofrimento vão nos fazendo amadurecer e conhecer nossos limites. E devemos passar a compreender a noção de que, embora se faça tudo que é possível para salvar um doente, nem sempre teremos sucesso.

Referências
CAIXETA, M. Psicologia Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005, cap. 57.
CRANDALL, S.J. S., VOLK, R.J.; LOEMKER, V. Attitudes of medical students toward providing care for the underserved. J Am Med Assoc. 269 (9): 2519-23, 1993.
HEBERT, P.C.; MESLIN, E.; DUNN, S.R. Measuring the ethical sensitivity of medical students: a study at the University of Toronto. J Med Ethics. 18 (6): 142-7, 1992.
LYNN, J.; TENO, J.; PHILLIPS, R. Perceptions by family members of the dying experience of older and seriously ill patients; SUPPORT Investigators Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risks of Treatments. Ann Intern Med, 126: 97-106, 1997
MILLS, M.; DAVIES, H., MACRAE, W. Care of dying patients in hospital. BMJ 309: 583-6, 1994 .
QUINTANA, Alberto M. & ARPINI, Dorian M. A atitude diante da morte e seu efeito no profissional de saúde: Uma lacuna da formação? Revista Psicologia Argumento, 19 (30): 45-50, 2002.
SHORR, F.; HAYES, R.P.; FINNERTY, J.F. The effect of a class in medical ethics on fist year medical students. Acad Med. 69 (12): 998-1000, 1994.
SILVA, J. T. N. et al. Medida da Sensibilidade Ética em estudantes da Medicina: um Estudo na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Rev Bras Educ Méd, 29 (2): 103-109, 2005 

Imagem: a foto da postagem foi extraída de http://www.ccctg.ca/publications_abstracts.php