7 de setembro de 2010

Uma Breve História da Aids

"A peste é uma metáfora da aids e a aids é uma metamorfose da peste" 
(TEIXEIRA, 1993)

O homem herdou de seus ancestrais muitas doenças infecciosas transmissíveis. Outras, como a AIDS, ele adquiriu recentemente, enquanto se livrava de apenas algumas poucas, como a varíola. Desde fins do ano de 1980 a ocorrência de alguns casos de pneumocistose e Sarcoma de Kaposi intrigavam alguns médicos nos Estados Unidos. Acometendo pessoas jovens e previamente saudáveis, estes casos estavam completamente fora do padrão habitualmente esperado para as duas doenças. Portanto, chamou a atenção dos pesquisadores a raridade da detecção de infecções oportunistas e neoplasias em jovens. Uma característica das pessoas acometidas, contudo, se destacava: todas as pessoas acometidas pela doença eram homossexuais masculinos.
Iniciava-se assim mais um capítulo da História da Medicina que levaria a uma mobilização social nunca antes vista. Somente um ano depois, em 1981, foram feitos os primeiros diagnósticos da nova doença - já conhecida, então, como AIDS, sigla em inglês da expressão "Síndrome de Imunodeficiência Adquirida". Este termo foi adotado para evitar as denominações discriminatórias usadas até então, tais como GRID (gay-related immune defficiency, imunodeficiência relacionada aos gays), "câncer-gay" e "peste-gay" (CAMARGO, 2005). Em 5 de junho de 1981 uma publicação do Center for Disease Control (CDC) dos Estados Unidos registrou a descoberta da AIDS. Dezoito meses mais tarde os dados epidemiológicos indicavam que se tratava de uma doença infecciosa e transmissível por via sexual e/ou por transfusão de sangue ou derivados. A transmissão resultante da utilização de derivados do sangue levou à suposição de que o agente causal fosse um vírus (MACAMBIRA et al., 1993). O conhecimento disponível sobre a doença acumulou-se rapidamente. Novos agregados de casos em certos grupos foram descobertos, e surgiu a expressão "grupos de risco", que incluíam os homossexuais masculinos, hemofílicos, usuários de drogas injetáveis e haitianos. A falta de entendimento epidemiológico asociada à denominação "grupos de risco" levou à idéia de que a doença acometeria apenas pessoas desses grupos populacionais específicos; isto interferiu de modo negativo na própria pesquisa - o nexo de quadros com a "nova doença" deixa de ser percebido em função de os seus portadores não se enquadrarem nestes grupos.
O impacto foi maior ainda na falta da devida prevenção, dando às pessoas fora destes grupos uma falsa sensação de segurança e reforçando estigmas e preconceitos. Esta pesada herança repercute ainda hoje na luta contra a epidemia (CAMARGO, 2005). Hoje não se admite a existência de "grupos de risco" e sim de "comportamentos de risco". Em janeiro de 1983, Françoise Brum detectou a enzima transcriptase reversa, característica dos retrovírus. A "caçada" pelo vírus levou à sua identificação por dois grupos de pesquisadores, um nos Estados Unidos, liderado por Robert Gallo, que o chamou de HTLV-III, e outro na França, liderado por Luc Montaigner, que o chamou de LAV. A disputa entre estes dois grupos pela primazia na descoberta foi resolvida por arbitragem internacional, e o vírus passou a ser chamado de "vírus da imunodeficiência humana", pela sua sigla em inglês - HIV (Ibid). Os franceses, verdadeiros descobridores do vírus da imunodeficiência humana, mostraram que o vírus por eles descoberto não pertencia ao grupo do HTLV (MACAMBIRA et al., 1993). Já em 1985, foram liberados os primeiros testes diagnósticos, baseados na detecção de anticorpos para o vírus. Surge a dimensão da soropositividade, e com ela todo um novo espectro de possibilidades tecnológicas - e também, infelizmente, de discriminação (CAMARGO, 2005). Não há dúvida de que a pandemia de AIDS mudou o conceito de doença e de doente em todo o mundo. Por outro lado, essa doença desafiou a ciência e foi um empecilho aos avanços da Medicina que, até então, estava concentrada na guerra contra o câncer, e que teve de se deparar com uma síndrome tão perniciosa que, além de tudo, possuía um agravante: era contagiosa.
Desde o início da epidemia (1980) até o final de 1997, um número estimado de 30,6 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV em todo o mundo. Deste contingente, 17,2milhões (58%) são homens e 12,2 milhões (42%) mulheres. A maioria das infecções, aproximadamente 28 milhões (93%), ocorreu em países subdesenvolvidos economicamente - 68% na África e 18% no Sudeste Asiático (SANCHES, 1999).
O surgimento da AIDS, entretanto, deu-se no centro de um otimismo tecnológico do mundo ocidental moderno, e lançou sombras sobre uma cultura que acreditava avançar a passos largos para a conquista próxima de um mundo sem os males infecciosos de outrora, ou seja, para o "fim das pestilências" (TEIXEIRA, 1993). A comparação da AIDS com a Peste, portanto, pode ser justificada, segundo Teixeira (1993), não apenas por uma identidade comum definida a partir de critérios médico-sanitários, mas principalmente por recolocar na cena cultural elementos que pareciam desaparecidos há muito tempo, "a irrupção da tragédia com sua força mítica", levando a comparações entre a AIDS e as grandes pestes que assolaram a humanidade.
Mas se a epidemia de AIDS tem sido comparada, de algum modo, à Peste Bubônica, não se pode afirmar que aquela seja parecida com o que foi a experiência histórica da denominada "Morte Negra". Para Teixeira (1993), a principal diferença reside numa "espécie de modulação do medo que acompanha a experiência atual e que, em absoluto, estava dada nas antigas visitações da Peste" [a Peste Bubônica].
A introdução da terapia anti-retroviral de alta potência (TARV), somada às ações de prevenção e controle da infecção pelo HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis, tem resultado em alterações no padrão da epidemia de AIDS ao longo dos últimos 20 anos. No Brasil existem 200 mil pessoas com AIDS e que recebem os antirretrovirais. O emprego de inibidores de transcriptase reversa no tratamento da AIDS desde 1987 e os avanços mais significativos no âmbito da terapia antirretroviral só foram possíveis graças aos estudos que esclareceram a imunopatogênese dessa infecção. Em países desenvolvidos, a tendência de diminuição da morbimortalidade relacionada à AIDS havia sido observada mesmo antes do surgimento da TARV, tendo sido atribuída à profilaxia e ao melhor manejo clínico das infecções oportunistas. Contudo, com o advento dos inibidores de protease, esse fenômeno se acentuou (DOURADO et al., 2006).
O Brasil foi um dos primeiros países em desenvolvimento a garantir o acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de 1996. Uma importante estratégia da Política de Medicamentos do Programa Nacional de DST e AIDS (PN-DST/Aids) foi o estabelecimento de recomendações técnicas consensuais para utilização da mesma, por meio de comitês assessores, dada pela Lei 9.313/96 (Ibid).
A epidemia no Brasil tem aproximadamente 60% dos casos notificados associados a alguma forma de contato sexual, sendo quase a metade (42,9%) do total de casos notificados. Os homossexuais masculinos foi o grupo que concentrou a maior parte dos casos nos primeiros anos da epidemia que, em seguida disseminou-se entre usuários de drogas injetáveis e aqueles que recebiam transfusão de sangue e/ou hemoderivados.
A partir de meados dos anos 1990 do Século XX, a epidemia se disseminou entre heterossexuais, que constituem atualmente a subcategoria de exposição sexual com o maior número de casos notificados da doença.
Como uma das consequências, a incidência de AIDS aumentou rapidamente entre as mulheres e a razão de casos homem/mulher decresceu de 19:1, em 1984, para 1,5:1, em 2004, chegando a 0,9:1 na faixa de 13 a 19 anos em 2006. A estimativa de gestantes infectadas é de 16.410 mulheres (0,4%) com idades entre 15-34 anos, com uma taxa de transmissão vertical que vem se reduzindo no país: de 16% em 1997 para 3,7% em 2002, com variações regionais (DOURADO et al., 2006).
De acordo com dados da Joint United Nations Programmes on HIV/AIDS (UNAIDS, 2004), estima-se que, até 2005, 3,1 milhões de pessoas morreram de aids: 2,6 milhões de adultos e 570 mil menores de 15 anos de idade. A situação da mortalidade por AIDS no mundo é mais crítica na África, onde continua elevada até os dias atuais. Nos países da região, barreiras econômicas, geográficas e socioculturais dificultam o acesso à terapia antirretroviral e a prevenção das doenças oportunistas entre os que vivem com o HIV/AIDS (REIS et al., 2007). O primeiro caso brasileiro conhecido de morte por AIDS ocorreu em 1980, no Estado de São Paulo. Nestes 30 anos de história, a doença foi se tornando uma das principais causas de morte da população, incidindo principalmente no adultos jovens e com maior intensidade no sexo masculino.
Porém, o padrão da mortalidade por AIDS observado nos primeiros quinze anos da epidemia alterou-se fortemente no final do século XX. A tendência crescente mantida até a metade dos anos 1990 cedeu lugar a uma expressiva queda registrada na década atual (Ibid). Por outro lado, a partir do eixo Rio-São Paulo, os casos de AIDS disseminaram-se para as demais regiões, inicialmente às metrópoles regionais, a partir do final da década de 1980. As transformações no perfil da AIDS no Brasil, embora com dinâmicas regionais e populacionais distintas, devem-se, sobretudo, à difusão geográfica da doença a partir dos grandes centros urbanos em direção aos municípios de médio e pequeno porte do interior do país, ao aumento da transmissão heterossexual e ao persistente crescimento dos casos entre usuários de drogas injetáveis (BRITO et al., 2001).
A epidemia da infecção pelo HIV e da AIDS constitui fenômeno global, dinâmico e instável. A AIDS tem propiciado uma discussão política e científica desde seu surgimento. A briga política científica entre Estados Unidos e França sobre o descobrimento do HIV, os testes com placebos realizados por empresas de medicamentos em países africanos e, mais recentemente, a quebra das patentes dos medicamentos – tudo isso tem tornado a AIDS, além de um problema epidemiológico, um fato e um fenômeno político.
Para finalizar, repetem-se perguntas feitas por Oltramari (2004):
as políticas de produção de conhecimento em relação à epidemia seriam diferentes se os organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), não tivessem sido pressionados por esses movimentos sociais [homossexuais norte-americanos e, posteriormente, brasileiros]? Será possível pensar na prevenção e no tratamento da doença sem usar metáforas de guerra, uma vez que vivemos em um período tão marcado por confrontos armados? (OLTRAMARI, 2004, p. 177).
O dia 1 de dezembro foi escolhido como Dia Mundial de Combate à AIDS pela Assembléia Mundial de Saúde desde outubro de 1987.
Referências BRITO, A. M.; CASTILHO, E. A.; SZWARCWALD, C. L. AIDS e infecção pelo HIV no Brasil: uma epidemia multifacetada. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. 34 (2): 207-217, 2001.
CAMARGO, K. AIDS Vinte anos: Esboço histórico para entender o Programa Brasileiro. Adaptado do texto original de Kenneth Camargo (2005). Disponível em: http://www2.aids.gov.br/data/Pages/LUMISBD1B398DPTBRIE.htm DOURADO, I.; VERAS, M. A. S. M; BARREIRA, D.; BRITO, A. M. Tendências da epidemia de Aids no Brasil após a terapia anti-retroviral. Rev. Saúde Pública 40 (suppl): 9-17, 2006.
MACAMBIRA, R. et al. A síndrome da imunodeficiência humana adquirida: Estadod a arte. F Méd (BR), 106 (1-2) 11-12, 1993.
OLTRAMARI, L. As políticas da Aids em mundo globalizado: uma relação entre doença e política da ciência Rev. bras. Ci. Soc. 19 (54): 175-178, 2004.
REIS, A. C.; SANTOS, E. M.; CRUZ, M. M. A mortalidade por aids no Brasil: um estudo exploratório de sua evolução temporal. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, 16 (3):195-205, 2007.
SANCHES, K. R. B. A AIDS e as mulheres jovens: uma questão de vulnerabilidade. [Doutorado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 1999. 143 p.
TEIXEIRA, R. R. Epidemia e Cultura A.I.D.S. e Mundo Securitário. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Área de Medicina Preventiva. São Paulo, 1993. Disponível em: http://www.corposem.org/rizoma/capitulo1.htm#metáforas. Acesso em 07 set. 2010.
UNAIDS. Report on the Global HIV/AIDS Epidemics, 2004. Geneva: Unaids, 2004.

Imagem desta postagem: A imagem do laço vermelho retorcido é visto como símbolo de solidariedade e de comprometimento na luta contra a AIDS e forma um "A" de "abraço". O projeto do laço foi criado em 1991 pela "Visual Aids", grupo de profissionais de arte de New York.